O Mercosul e a União Europeia (UE) negociam, desde 1999, um acordo para reduzir ou zerar as tarifas de importação e exportação entre os dois blocos, que, agora, corre o risco de não ser implementado, tirando o potencial de mercado para os produtos agrícolas brasileiros. Além do Brasil, o Mercosul é composto por Argentina, Paraguai, Uruguai – a Venezuela foi suspensa em 2016.
As duas partes finalizaram a primeira etapa do tratado em 2019. Dessa rodada, saiu um texto que vem passando por revisões e exigências adicionais, principalmente por parte da União Europeia, que está sendo pressionada por agricultores do bloco.
Nas últimas semanas, inclusive, produtores rurais da França, Alemanha, Itália, Bélgica, Polônia, Romênia e Lituânia saíram às ruas para protestar contra as importações de produtos mais baratos e aumento dos custos agrícolas.
Uma das manifestações mais emblemáticas aconteceu na França os agricultores bloquearam as principais rodovias de Paris com caminhões e tratores. No mesmo dia, o presidente da França, Emmanuel Macron, pediu à Comissão Europeia que desista do tratado com o Mercosul. Em dezembro do ano passado, ele já tinha se posicionado contra o acordo, ao chamá-lo de “antiquado” e “mal remendado”.
Mas, do lado de cá, o que os agricultores brasileiros têm a perder, caso o tratado vá por água abaixo?
Para o analista da consultoria Safras & Mercado Fernando Henrique Iglesias, o Brasil perderia, neste contexto, a possibilidade de diversificar os seus parceiros comerciais e reduzir a sua dependência da China, que importa a maior parte (36%) dos nossos produtos agrícolas.
Para a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) a resposta não é tão simples: os produtores rurais consideram o texto inicial do acordo muito bom para o agronegócio brasileiro por prever a redução e/ou isenção de muitas mercadorias.
Porém, três anos depois da 1ª versão do tratado, a UE implementou uma lei que barra a importação de produtos de áreas desmatadas. O problema dessa legislação, para a CNA, é que ela não conversa com as regras do Código Florestal do Brasil, o que tende a travar o comércio entre os dois blocos (entenda mais abaixo).
Chance de diversificar exportação
Para o consultor do Safras, o acordo com a UE seria uma ótima oportunidade para a economia brasileira não ficar tão dependente do que acontece na China. Somente em 2023, as compras chinesas renderam ao agronegócio do Brasil US$ 60,2 bilhões, com destaque para exportação de soja (US$ 39 bilhões) e carnes (US$ 8 bilhões), mostram dados do Ministério da Agricultura.
“Nós estávamos acostumados com os chineses crescendo na casa dos dois dígitos anualmente. Mas, agora, eles estão em um ritmo mais lento e isso gera preocupação para o mercado brasileiro. Seria muito importante, portanto, diversificar as nossas fontes de receita. A ideia não é parar de vender para a China, mas, sim, de não colocar todos os ovos na mesma cesta. E também não quer dizer que a Europa não está comprando da gente, mas que está comprando bem menos do que poderia”, conclui.
Na cafeicultura, por exemplo, o Brasil consegue faturar cerca de US$ 3,7 bilhões por ano com as vendas para UE, montante que poderia ser maior se o país tivesse isenção de imposto.
Hoje, para exportar café solúvel para a Europa, por exemplo, o Brasil paga uma tarifa de 9%, que poderia ser zerada em quatro anos, caso o acordo Mercosul-UE entrasse em vigor, ilustra a diretora de Relações Internacionais da CNA, Sueme Mori.
A Colômbia, que é a 3º maior exportadora de café do mundo, depois do Brasil e da Suíça, já tem, por exemplo, tarifa zero para vender café aos europeus.
Brasil perdeu a oportunidade?
Marcos Jank, coordenador do Centro Insper Agro Global, também acredita que o acordo com os europeus tem o potencial de ampliar o nosso mercado, mas avalia que o Brasil perdeu a chance de fechar este e outros tratados lá nos anos 2000, quando o mundo estava mais aberto a acordos de comércio.
Para ele, o tratado seria positivo mesmo não se tratando de um livre comércio, disse em entrevista ao podcast.
“Desde o começo, a Europa não quis dar livre comércio para os principais produtos exportados pelo Brasil, que são basicamente os produtos do complexo soja, carne, açúcar. Foi tudo negociado através de cotas de importação, portanto, de restrições quantitativas”, ressaltou Jank.
Além dos produtos que ele cita, o texto acordado em 2019 prevê cotas para arroz, mel, etanol, queijo, leite em pó, entre outros. Apesar dessas restrições, Jank acredita que o acordo seria um caminho para o Brasil poder fechar outras parcerias.
“É o que acabou acontecendo, por exemplo, com os países da Comunidade Andina, da América Central, o México. Eles conseguiram ampliar a diversidade de produtos exportados e, hoje, os principais clientes deles no agro são os EUA e a Europa, e o nosso é a China. Isso porque a gente não conseguiu fazer acordo nem com os Estados Unidos e nem com a Europa”, relembra.
“Eu acho que o cenário mudou. Quando nós começamos a negociação há mais de 20 anos, era uma integração comercial, o que se discutia era acesso à mercado”, acrescenta, ressaltando que, atualmente, a Europa está mais protecionista, inclusive na área ambiental.
Por que leis ambientais podem travar acordo?
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) vê as legislações ambientais implementadas pela Europa, recentemente, como um entrave à concretização do acordo Mercosul-UE. Isso porque elas não dialogam com as regras ambientais brasileiras.
Uma das legislações europeias, a Lei Anti-desmatamento, foi instituída em dezembro de 2022, mais de três anos depois de os dois blocos terem fechado uma primeira versão do acordo.
A nova lei estabeleceu que, a partir de janeiro 2025, a Europa está proibida de comprar mercadorias de área desmatada. A regra inclui produtos como carne, soja, cacau, café e chocolate, que sejam oriundos da Amazônia e de parte do Cerrado.
“Por que isso é um problema? Porque o Brasil tem um código florestal que permite abrir terra”, diz a diretora de Relações Internacionais da CNA, Sueme Mori. Atualmente, o Código Florestal prevê que as propriedades rurais reservem uma parte de sua terra para preservação ambiental, enquanto uma outra parte pode ser usada para a produção agrícola e pecuária.
No caso da Amazônia, por exemplo, os proprietários podem usar 20% da sua terra para produzir, mas devem deixar 80% para a reserva legal. Já no Cerrado, a Área de Reserva Legal (ARL) é de 35%.
“Quando a gente negocia um acordo comercial, a gente negocia o acesso: eu libero o meu mercado e você libera o seu…claro que se estabelecem algumas proteções, exceções. Mas quando a União Europeia faz uma lei antidesmatamento depois de ter fechado o texto com o Mercosul, o que ela está fazendo? Está impedindo que a gente tenha acesso ao mercado dela por uma legislação interna”, diz Sueme.
“Como você fecha um acordo e depois muda a regra?”, questiona. Segundo a diretora, era o caso de a UE ter considerado as especificidades da legislação ambiental de cada país do bloco sul-americano.
“A CNA é favorável ao acordo desde que ele garanta acesso real dos produtos agropecuários brasileiros no mercado europeu”, conclui Sueme.
Rastreabilidade da carne brasileira
Jank concorda que a nova lei europeia antidesmatamento pode travar o acordo, principalmente no comércio de carne bovina.
“Hoje, a gente consegue rastrear [a carne] do produtor final, ou seja, daquele que entrega boi ao frigorificos. Já existe a rastreabilidade total nessa área. Mas a gente ainda não consegue rastrear o primeiro produto: o bezerro, o boi magro, o boi gordo”, explica.
A trava na rastreabilidade a que Jank se refere está nos fornecedores indiretos: fazendas em situação irregular que produzem bezerro ou boi magro para vender a criadores que estão em dia com a lei.
Fernando Henrique Iglesias, que é analista do mercado de carnes, é mais positivo em relação a este tema. Ele conta que os grandes frigoríficos brasileiros estão fazendo altos investimentos em tecnologias de rastreamento de fornecedores indiretos.
“Eu acredito que, no decorrer dessa década, o Brasil deve avançar bem na rastreabilidade de animais”, diz.